CLÁSSICO DA BROADWAY, GYPSY GANHA PRIMEIRA VERSÃO
BRASILEIRA PELAS MÃOS DE CHARLES MÖELLER E CLAUDIO BOTELHO

Mega-produção estreia dia 30 de abril no Teatro Villa-Lobos

Gypsy’ é um dos raros casos de musical cujo status de ‘clássico’ o acompanha desde a estreia, há pouco mais de meio século. Saudado como obra-prima já na primeira apresentação, o espetáculo arrebatou público e crítica com a atribulada trajetória da stripper Gypsy Rose Lee (1911 – 1969) e sua mãe, contada através da perfeita integração do texto de Arthur Laurents, a música de Jule Styne, as letras do então novato Stephen Sondheim e a coreografia do gênio Jerome Robbins. Após se dedicar à montagem de dois espetáculos da Broadway contemporânea – ‘Avenida Q’ e ‘O Despertar da Primavera’, que juntos somam 12 indicações ao Prêmio APTR –, Charles Möeller e Claudio Botelho assumiram o desafio de encenar a primeira versão brasileira deste clássico. Com 38 atores, 17 músicos, 18 trocas de cenário e 140 figurinos, a mega-produção brasileira de ‘Gypsy’ estreia no próximo dia 30 de abril, no Teatro Villa-Lobos, com patrocínio da Bradesco Seguros e Previdência e realização da Aventura Entretenimento.

 

Claudio e Charles encaram ‘Gypsy’ como uma grande homenagem ao teatro musical. Ainda que a base para o texto de Laurents tenha sido o livro de memórias da personagem-título, o motor da história é a controversa figura de Mama Rose, cuja existência girava em torno de fazer das filhas, June (Renata Ricci) e Louise (Adriana Garambone), posteriormente chamada de Gypsy Rose Lee, estrelas do teatro norte-americano do início do século passado. ‘Pais que vivem as vidas de seus filhos, crianças que se tornam seus pais quando crescem, essa é a história de ‘Gypsy’. Mas o tema que impulsiona tudo é a necessidade de reconhecimento, sob os refletores ou não’, analisou o autor, Arthur Laurents, na época da estreia do texto, que já se encontra na sétima remontagem nos Estados Unidos.

 

Mama Rose é considerada até hoje como um dos personagens mais complexos da história dos musicais. O que impulsiona tudo é a obsessão dela pelo sucesso no  teatro e a fascinação pelo mundo do entretenimento. ‘Gypsy’ é um hino, um libelo ao teatro musical’, analisa Claudio, que encontrou em Totia Meireles as características ideais para encarar o desafiador papel de Mama Rose, considerado o ‘Rei Lear’ dos musicais.

 

Ao rodar o interior do país com o número musical de suas filhas ainda crianças, Rose percorre toda a sorte de casas de espetáculo e presencia a decadência do Vaudeville (teatro de variedades) nas primeiras décadas do século passado. Em uma de suas investidas, ela conhece Herbie (Eduardo Galvão), que se tornará um misto de empresário e seu capacho amoroso. Quando as meninas crescem, June segue o próprio caminho longe da mãe e o antigo gênero vai aos poucos cedendo lugar ao Burlesco, estilo, digamos, menos inocente, com números de strip-tease e insinuações sexuais.

 

Apaixonada pelo show bizz, Rose reluta em se adaptar aos novos tempos, mas – sabendo que o show precisa continuar – acaba sendo uma das responsáveis pelo início da carreira de Louise (agora rebatizada como Gypsy Rose Lee) como stripper. Em poucos anos, ela – antes preterida pela mãe e aparentemente destituída de talento – se tornaria a profissional da área mais bem paga do mundo. ‘Antes de ‘Gypsy’, o mito do patinho feio que se transforma em cisne não havia sido retratado com tanta profundidade. Isso é algo que motiva o cinema até hoje, Hollywood faz isso sempre: a história de uma redenção. Gypsy como personagem da peça e mesmo em seu livro de memórias é a encarnação do sonho americano’, avalia Charles.

 

 

Montagem é também um desafio para a produção

 

Por atravessar a cena teatral norte-americana ao logo de três décadas em uma série de cidades diferentes, ‘Gypsy’ estende sua complexidade para a produção. Afinal, são 18 trocas de cenários tão diferentes como são os palcos do teatro burlesco, dos números infantis de Vaudeville e os ambientes internos, de casas, restaurantes e quartos de hotel. Os quase cem personagens vestem 140 figurinos de épocas diversas. ‘O trabalho pode ser comparado ao de ‘A Noviça Rebelde’, em termos de estrutura e de profissionais envolvidos. Junto com a ‘Noviça’, esta é a nossa maior produção’, conta Aniela Jordan, uma das sócias da Aventura Entretenimento.

 

Uma complexa engenharia foi elaborada para dar funcionamento ao projeto cenográfico de Rogério Falcão (indicado ao Shell pelo trabalho em ‘A Noviça Rebelde’, ‘O Despertar da Primavera’ e ‘7 – O Musical’). Para construir os 18 cenários do espetáculo, mais de 30 profissionais trabalharam por quase um mês, entre marceneiros, ferreiros e montadores. Os números impressionam: foram utilizados 13 toneladas de madeira e duas toneladas de ferro. Para suportar todo o peso, foram instaladas 40 varas cênicas no urdimento do Teatro Villa-Lobos.

 

A função do figurinista Marcelo Pies (recentemente indicado ao Shell por ‘O Despertar da Primavera’ e por ‘Hamlet’, com direção de Aderbal Freire-Filho) foi tão trabalhosa quanto a de Rogério. Para reconstituir fielmente a época retratada em cena e dar conta dos figurinos e de inúmeros acessórios, ele instalou um ateliê com 11 profissionais no teatro em que ocorreram os ensaios. Por se tratar de uma montagem sobre o mundo dos espetáculos, com muita dança e sapateado, os cuidados com as roupas foram ainda maiores. Entre os destaques, estão os figurinos utilizadas nos shows de Louise – que exigem uma troca muito rápida –, os 67 pares de sapato, as 25 perucas e incríveis 240 objetos de cena.

 

A ficha técnica de ‘Gypsy’ se completa com outros velhos colaboradores de Claudio e Charles. Um dos parceiros mais constantes da dupla, o iluminador Paulo César Medeiros utilizou quase duas toneladas de equipamento para o trabalho. Mais uma vez, a direção musical ficou a cargo do maestro Marcelo Castro e Tina Salles é a responsável pela coordenação artística.

 

A coreografia original do gênio Jerome Robbins será reproduzida nesta montagem brasileira, que conseguiu adquirir os direitos junto aos herdeiros do lendário coreógrafo.

 

 

Como é de praxe, o elenco foi escolhido por testes, realizados em outubro do ano passado, à exceção de Totia Meireles e Adriana Garambone, escaladas desde o início do projeto. A seleção foi mais delicada do que costuma ser, por exigir um elenco infantil especialmente talentoso para o canto, dança e sapateado. Assim como acontecia em ‘A Noviça Rebelde’, 14 crianças vão se revezar em diversos papeis durante a temporada, para não sobrecarregá-las diariamente. As personagens Baby June e Baby Louise, por exemplo, serão divididas entre seis meninas, três para cada.

 

 

Sondheim, um velho conhecido de Möeller e Botelho

 

No final da década de 50, Arthur Laurents foi convidado para escrever um espetáculo baseado no livro de memórias de Gypsy Rose Lee. ‘Achei bastante interessante, mas vi que não tinha a ver comigo. Os produtores persistiram e veio a ideia de pais que vivem a vida de seus filhos’, revelou Laurents no programa da montagem que celebrou os 50 anos de ‘Gypsy’. Conforme o texto ia ganhando forma, os produtores conseguiram fechar com Ethel Merman, a maior estrela dos musicais da época. Com o prestígio em alta, ela tinha poder sobre todo o processo de criação do espetáculo.

 

Foi ela a responsável pela adesão de Jule Styne ao projeto, que a princípio contaria com letra e música de Stephen Sondheim. ‘Merman anunciou que não se arriscaria com um compositor desconhecido, mas não teria o menor problema em deixar que eu fizesse as letras, desde que a música fosse de Jule Styne. Em parte fiquei feliz, pois acho que é um show de primeira classe, mas lamento pelo tempo que representou de atraso para meu trabalho de compositor’, contou Sondheim no livro ‘Sondheim & Co.’, de Craig Zadan. Apenas como letrista, ele – considerado um dos maiores gênios vivos da Broadway – imprimiu sua marca particular, com sofisticação e acidez. Até então, seu único trabalho em teatro tinham sido as letras de ‘West Side Story’.

 

Grande referência para Claudio e Charles, Sondheim já esteve presente em outros espetáculos da dupla. Primeira montagem de um musical do compositor na América Latina, ‘Company’ (2000) recebeu elogios do próprio Sondheim, que esteve na plateia do mesmo Villa-Lobos que receberá ‘Gypsy’. Coincidentemente, Totia Meireles também estava no elenco da montagem, especialmente bem recebida pela crítica, inclusive, em alguns veículos internacionais especializados em teatro musical.

 

Anos mais tarde, a dupla montou a revista ‘Lado a Lado com Sondheim’ (2005), uma grande coletânea de clássicos da carreira do compositor, todos com versão em português de Claudio Botelho. Encenar ‘Gypsy’ era um antigo sonho da dupla, adiado muitas vezes pela complexidade de produção. Depois da experiência com musicais grandiosos como ‘A Noviça Rebelde’, ‘Sweet Charity’ e ‘7 – O Musical’, eles perceberam que chegara a hora do desafio. ‘O musical tem um texto dramaticamente perfeito, com profundidade e personagens cheios de nuances. Ele é todo redondo: música perfeita, coreografia perfeita e dramaturgia perfeita’, justifica Charles.

 

Classificado pelo The New York Times como ‘o maior musical americano’, ‘Gypsy’ deu origem a dois filmes e seis revivals na Broadway. O mais recente comemorou os 50 anos da estreia, teve Patti LuPone em uma elogiada performance e comprovou mais uma vez que uma obra-prima não tem data de validade.

 

 

A atribulada trajetória de Gypsy Rose Lee

 

Gypsy Rose Lee nasceu em Seattle, Washington, em 1911, sendo batizada Rose Louise Hovick. Sua mãe, Rose, decidiu sair de Seattle e usou suas duas filhas para escapar. Rose Louise e sua irmã mais nova, June (que mais tarde foi dançarina de maratona campeã do mundo, atriz de teatro e escritora), foram lançadas ao show business. Mama Rose se divorciou e, em 1921, fez com que suas duas filhas estrelassem o espetáculo de vaudeville ‘Baby June and Her Farmboys’.

 

Quando June teve um caso com um integrante do coro, Mama Rose criou um novo número: ‘Rose Louise and Her Hollywood Blondes’, mas a esta altura o vaudeville estava morrendo e o burlesco, mais vulgar, estava tomando seu lugar. Aos 16 anos, Rose Louise descobriu sua vocação de stripper e mudou seu nome para Gypsy Rose Lee, adotando a jogada de fazer uma mistura de insinuações sexuais com humor. Ela foi atração de destaque no H.K.Minsky’s, clube de Nova York, a sensação do Irving Place Theatre e acabou chegando a destaque no Ziegfeld Follies, tornando-se conhecida como ‘a mulher mais aclamada no mundo’.

 

Quando as casas de teatro burlesco fecharam, em 1937, ela foi a Hollywood, mas inicialmente os estúdios tinham pudor para usar o nome que lhe tinha dado fama, preferindo anunciá-la sob seu nome verdadeiro. Em 1941 ela escreveu um script de filme policial, ‘The G-String Murders’.

 

Casada e divorciada três vezes, Gypsy Rose Lee teve uma série de amantes, inclusive o diretor de cinema Otto Preminger (pai do único filho dela, Erik Lee Preminger). Sua mãe dominadora acabou dirigindo uma pensão de lésbicas em Manhattan, tendo morrido em 1954.

 

Em 1957, publicou sua autobiografia, que dois anos depois inspirou o musical ‘Gypsy’. Nas décadas de 1950 e 1960, ela participou de muitos programas de televisão e teve o seu próprio talk show. Morreu em 1970, em decorrência de um câncer de pulmão. Sua irmã, June Havoc, faleceu em março de 2010, aos 97 anos.