FENÔMENO TEATRAL, ‘HAIR’ GANHA VERSÃO BRASILEIRA DIRIGIDA POR CHARLES MÖELLER E CLAUDIO BOTELHO

Sucesso de público, espetáculo ganhou duas sessões extras por semana no Oi Casa Grande

Em plena Guerra do Vietnã, o mundo experimentava as dores e as delícias da época: o amor livre, o rock psicodélico, a filosofia oriental, a descoberta de drogas como o LSD e o estilo de vida dos hippies. Por outro lado, assistia ao primeiro conflito internacional televisionado e se indignava com os horrores da segregação racial e sexual. Neste verdadeiro caldeirão de acontecimentos, ‘Hair’ estreava em um pequeno teatro off-Broadway, em 1967. Não precisou de muito tempo para se tornar um fenômeno, migrar para o circuito principal e se propagar em dezenas de montagens ao redor do planeta.

Hoje, mais do que um espetáculo teatral, ‘Hair’ é um mito. Com a passagem do tempo, o musical se tornou ao mesmo tempo espelho e uma das principais referências do movimento cultural e comportamental que mudou o mundo nas décadas de 60 e 70. Este acontecimento teatral sem precedentes vai aportar novamente por aqui, mais de 40 anos depois da única e lendária montagem nacional. Desde 5 de novembro, Charles Möeller e Claudio Botelho mostram ao público a novíssima versão brasileira de ‘Hair’, no palco do Oi Casa Grande. A empreitada tem produção da Aventura Entretenimento (‘A Noviça Rebelde’, ‘O Despertar da Primavera’, ‘Gypsy’) e patrocínio da SulAmérica Seguros e Previdência, da Oi e do Sesc Rio, com apoio cultural do Oi Futuro.

Símbolo de uma época, ‘Hair’ não se tornou um fenômeno com prazo de validade, o que foi recentemente comprovado pelo sucesso de duas remontagens (2009-2010), na Broadway e em Londres. ‘Ainda vivemos em guerra e os conflitos são muito parecidos e tão assustadores e sem sentido como o do Vietnã. Da mesma forma que ainda somos cheios de tabus e vivemos na intolerância. O grito de ‘Hair’ continua ecoando’, justifica Charles Möeller, que ressalta ainda todas as rupturas promovidas pelo espetáculo original, com texto de Gerome Ragni e James Rado e música de Galt MacDermot. Entre as novidades, estavam a relação direta com a plateia, uma emblemática cena de nudez frontal, a ausência de cenário e de uma coreografia formal.

‘Os autores estavam no lugar certo e na hora certa. Eles encenaram exatamente o que estavam vivendo, colocaram em letra e música aquilo que todos queriam falar. Não fizeram um musical, mas o manifesto de toda uma geração. Canções como ‘Aquarius’ viraram hinos até hoje’, explica Claudio Botelho. Para ele, a música é um dos fatores determinantes para a empatia do espetáculo com a plateia. A comunicação imediata é garantida pela mistura do rock – a principal voz dos jovens na época – com diversas sonoridades, como a música negra, que ainda não era divulgada para as massas, mantras orientais, letras psicodélicas e influências de música tribal.

Uma ‘tribo’ sui generis em cena

No palco, os atores são os instrumentos responsáveis por esta comunhão com o público. Através de cenas curtas, os personagens – integrantes de uma ‘tribo’ de hippies de Nova York – apresentam suas personalidades distintas, seus dilemas e seu peculiar estilo de vida. O coletivo é sempre destacado em cena, ainda que a trama principal gire em torno de Claude (Hugo Bonemer), jovem convocado para a Guerra do Vietnã, seu amigo Berger (Igor Rickli), uma espécie de líder da tribo, a grávida Jeanie (Letícia Colin) e a idealista Sheila (Carol Puntel). ‘Sempre brinco e falo que o personagem principal da peça é a tribo’, analisa Charles.

Chegar aos 30 eleitos para compor esta ‘tribo’ não foi uma tarefa fácil.  Charles Möeller, Claudio Botelho, a coordenadora artística Tina Salles, a produtora de elenco Marcela Altberg, a produtora Aniela Jordan e o diretor musical Marcelo Castro se depararam com mais de cinco mil inscrições para os testes, um recorde absoluto. Depois de uma primeira seleção, eles fizeram 700 audições, em um processo que durou três semanas. ‘É impressionante observar como a qualidade das audições aumentou em pouco tempo. Há sete anos, quando começamos a fazer testes, apenas 15% dos inscritos eram bons. Em ‘Hair’, mais de 85% foram excelentes, nunca vi nada igual. Acredito que o grande diferencial desta montagem será a força do elenco’, afirma Aniela Jordan, diretora executiva e sócia da Aventura Entretenimento.

‘Audição é fundamental em teatro musical. O maior ganho é conhecer pessoas novas. Montar ‘Hair’ e descobrir dois protagonistas é ótimo, garante uma cara fresca’, analisa Charles, se referindo à escolha de Hugo Bonemer e Igor Rickli para os principais papeis masculinos. Os dois interpretam os amigos Claude e Berger, definidos por Charles como ‘as duas faces da mesma moeda’. Enquanto o primeiro se demonstra frágil, cheio de dúvidas e transborda sensibilidade, o outro tem um lado selvagem e uma sexualidade aparente. ‘É como se fosse o id e o superego, o corpo e a alma, o racional e o irracional conduzindo essa tribo’, resume o diretor.

Liberdade na recriação de um ícone

Nos bastidores, Charles e Claudio contam com a premiada equipe que os acompanhou nos últimos espetáculos. Vencedor dos prêmios Shell e APTR pela iluminação de ‘O Despertar da Primavera’, Paulo César Medeiros assina a luz da montagem. Marcelo Pies, indicado ao Shell por ‘Gypsy’, trabalha com uma infinidade de peças originais e acessórios de época na composição de um legítimo figurino hippie para a tribo. Rogério Falcão, por sua vez, é responsável por toda a cenografia do espetáculo, cujo visual tem inspiração direta no psicodelismo.

Se no espetáculo original o palco vazio e sem elementos era uma novidade, a montagem atual preferiu criar uma ambientação especial para a tribo. ‘Tudo se passa em um local abandonado, que poderia ser uma igreja, um hospital, um casarão’ explica Charles, que optou por suavizar as referências americanas do texto. Assim como em todos os outros espetáculos de Möeller & Botelho, os direitos de ‘Hair’ foram comprados com total liberdade na adaptação.

Esta versão autoral da dupla se completa com a colaboração do coreógrafo Alonso Barros (‘Sweet Charity’, ‘O Despertar da Primavera’), brasileiro radicado em Viena há 20 anos. Os extensos números de dança mobilizam todo o elenco e dialogam com a proposta de ‘não-coreografia’ do espetáculo original. O trabalho de dança inclui cenas de plateia em que o elenco sobe – literalmente – pelas cadeiras e espectadores, que ainda são convidados a subir no palco na canção final, a libertadora ‘Let the sunshine in’.

A cronologia de um fenômeno

Também atores, Gerome Ragni e James Rado levaram três anos para chegar ao texto final de ‘Hair’. Durante esta gestação, eles absorveram as inúmeras referências e as rápidas transformações que o mundo vivia. Galt MacDermot se uniu à dupla no final de 1966 e, em apenas três meses, compôs toda a música do espetáculo, cuja sonoridade também remetia ao inconsciente coletivo jovem da época.

A estreia triunfante no circuito off-Broadway impulsionou a montagem para o circuito principal em pouco tempo. Em abril de 1968, ‘Hair’ estreava no Biltmore Theatre com mais um feito: a aprovação unânime de toda a tradicional crítica especializada. Mesmo alertando os leitores acerca das cenas de sexo, nudez e homossexualidade, os jornalistas se renderam por completo, caso do lendário Clive Barnes, temido e respeitado crítico do The New York Times.

Em sua resenha, ele ressalta a novidade, o frescor e toda a inventividade do que era mostrado. ‘É simples saber porque ‘Hair’ é tão adorado’, disse na época. Por conta da transgressão que é vista em cena, John Chapman, do Daily News, elogiava a montagem, mas frisava que não era um musical para levar uma dama, enquanto Richard Watts, do Post, afirmava que é difícil resistir à energia jovem do elenco.

O espetáculo seguiu em cartaz até 1973 e deu origem ao filme homônimo, dirigido por Milos Forman e lançado em 1979. Responsável por popularizar ainda mais a peça e as canções, o longa metragem optou por dar um tratamento menos psicodélico e estruturar o roteiro de forma cartesiana, privilegiando uma dramaturgia mais convencional. As mudanças envolveram os perfis dos personagens e até o enredo, que sofreu uma grande alteração em seu desfecho. Não à toa, os autores da peça rejeitaram enfaticamente o filme.

A Era de Aquarius no Brasil

Até hoje, um espetáculo da Broadway leva um certo tempo para ser encenado em outros países. Como mais uma prova do fenômeno coletivo que é ‘Hair’, o musical já estreava no Brasil em outubro de 1969. Depois de uma complicada negociação de direitos com os autores americanos e com a censura brasileira, a montagem – dirigida por Ademar Guerra – repetiu o sucesso e causou enorme polêmica na época, menos de um ano após a publicação do AI-5.

As apresentações repercutiam em todo o país e impulsionaram a carreira de artistas como a estreante Sonia Braga. Ao longo da temporada, que durou até 1972, nomes consagrados se revezaram nos elencos, como Antonio Fagundes, Nuno Leal Maia, Aracy Balabanian, Armando Bogus, Ariclê Perez e Ney Latorraca.

Depois de assistir à celebrada remontagem da diretora Diane Paulus em Nova York, em 2009, Charles Möeller e Claudio Botelho concordaram que era a hora de enfrentar o desafio, dar a visão da dupla para o musical e trazer o mito de ‘Hair’ de volta ao Brasil.  ‘Vendo a peça, a gente percebe como a juventude é parecida, independente da época. O tempo é muito curto e transitório. Por isso mesmo, ‘Hair’ continua moderno e, mais do que isso, intenso’, resume Charles.